A emocionante "Construção" de Chico Buarque segue atual, meio século depois



Carlos Motta

Que Chico Buarque é um craque na poesia, poucos discordam. Não fosse um compositor popular, certamente estaria entre os mais celebrados poetas do Brasil. Não é à toa que a sua prosa também é excelente.

Impressiona também, em sua obra, o seu ecletismo. Chico cantou as várias formas do amor, abordou a solidão, foi nostálgico, revelou um lirismo arrebatador que nunca se confundiu com a pieguice. E, quando o país mais precisava, foi um crítico mordaz e implacável dos ditadores de plantão.

Mas algumas de suas canções se superam, por juntarem elementos de todas essas suas facetas de criador genial.

É o caso de "Construção", que dá nome ao LP de 1971, um de seus melhores. Lá estão, além de "Construção, "Deus Lhe Pague" , "Cotidiano", "Desalento", "Cordão", "Olha Maria", "Samba de Orly", "Valsinha", "Minha História" e "Acalanto".

"Construção" é uma espécie de síntese da poética de Chico Buarque. Reúne crítica social, lirismo, rigor técnico, a angústia humana, a inquietação filosófica...

Os versos, ancorados em palavras proparoxítonas, se encaixam perfeitamente numa melodia de poucas células, hipnótica. O arranjo do maestro Rogério Duprat, com os metais estourando, dá o toque final à obra-prima, um caleidoscópio de sensações, um quebra-cabeças cujas peças se encaixam perfeitamente para formar não uma, mas várias figuras.

"Construção", lançada há quase meio século, segue atual, instigante e provocadora. E evoca um personagem que, vergonha das vergonhas, ainda existe aos milhões neste pobre Brasil.

No vídeo, o argentino Fito Páez a interpreta num show no México, desafinando algumas vezes, mas prestando um emocionado tributo a Chico Buarque, um dos maiores compositores populares não só do Brasil, mas de todo o mundo.

https://www.youtube.com/watch?v=lQJfzGJ6L9A

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido


Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima


Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música


E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego


Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado


Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego


Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo


E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público


Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro


E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Comentários