A canção da desesperança



Carlos Motta

Vários compositores fizeram músicas de protesto contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, que são lembradas e cantadas até hoje, como a icônica "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré.

Nenhuma canção, porém, expressou tão bem a desesperança de uma geração quanto "Pois É, Pra Quê?", de Sidney Miller, lançada em 1969 pelo MPB-4, portanto pouco tempo depois da edição do AI-5, o ato institucional que fechou de vez o regime e condenou o país a duas décadas de trevas.

Sidney Miller morreu cedo demais, aos 35 anos, em 1980. Mas deixou uma obra marcante, inquieta e extremamente sensível ao tempo em que viveu. 

Musicalmente, valeu-se, para se expressar, de vários gêneros musicais, mas principalmente do samba. Suas melodias são simples, fáceis de cantar, ao contrário de suas letras, verdadeiros poemas, textos que falam da solidão, do desamor e da dificuldade do homem em se ajustar a um mundo construído na base da opressão, violência e injustiça.

"Pois É, Pra Quê?" tem tudo isso e não aponta caminhos nem soluções para a inutilidade de uma vida que se perde em meio a necessidades, ritos e obrigações impostas por uma sociedade sem "nada de novo", de atmosfera sufocante e que reprime qualquer manifestação de liberdade criativa, qualquer opinião contrária à ideologia dominante.

É uma canção tristíssima, e por isso mesmo atual, já que também no Brasil de hoje a esperança foi soterrada.



O automóvel corre, a lembrança morre,
o suor escorre e molha a calçada,
há verdade na rua, há verdade no povo,
a mulher toda nua, mais nada de novo,
a revolta latente que ninguém vê,
e nem sabe se sente, pois é, pra quê?

O imposto, a conta, o bazar barato,
o relógio aponta o momento exato
da morte incerta, a gravata enforca,
o sapato aperta, o país exporta,
e na minha porta, ninguém quer ver
uma sombra morta, pois é, pra quê?

Que rapaz é esse, que estranho canto,
seu rosto é santo, seu canto é tudo,
saiu do nada, da dor fingida,
desceu a estrada, subiu na vida,
a menina aflita ele não quer ver,
a guitarra excita, pois é, pra quê?

A fome, a doença, o esporte, a gincana,
a praia compensa o trabalho, a semana,
o chope, o cinema, o amor que atenua,
o tiro no peito, o sangue na rua,
o fome a doença, não sei mais porque,
que noite, que lua, meu bem, pra quê?

O patrão sustenta o café, o almoço,
o jornal comenta, um rapaz tão moço,
o calor aumenta, a família cresce,
o cientista inventa uma flor que parece
a razão mais segura pra ninguém saber
de outra flor que tortura, pois é pra quê?

No fim do mundo há um tesouro,
quem for primeiro carrega o ouro,
a vida passa no meu cigarro,
quem tem mais pressa que arranje um carro,
pra andar ligeiro, sem ter porque

Sem ter pra onde, pois é, pra quê?

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