Versos de luta, músicas de um país que sangra



Carlos Motta

"Mordaça", um hino de resistência à ditadura militar que sufocava a nação, foi lançada no LP "O Importante é que Nossa Emoção Sobreviva", mesmo título do show que reuniu os dois autores da música - Eduardo Gudin, melodia, e Paulo César Pinheiro, letra, além da cantora Márcia.

Os versos do poeta Paulo César Pinheiro são magistrais:

Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo o que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva

O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo o que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa

É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva

E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar 

Muitos anos depois, em plena democracia, Paulo César Pinheiro se encontrou com Wilson das Neves, baterista, percussionista, compositor e cantor temporão, um dos músicos populares essenciais do país, morto em agosto deste ano, e juntos fizeram "O Dia Em Que o Morro Descer e Não For Carnaval", uma visão apocalíptica de um país dividido entre miseráveis e pobres - muitos, milhões - e ricos - poucos, mas donos do poder e responsáveis pela manutenção da maior desigualdade social do planeta.

Novamente, Paulo César Pinheiro produziu versos que fazem sangrar os corações mais empedernidos.

E que provam, de maneira inequívoca, que apesar de tudo, a arte popular não só retrata o seu tempo, mas sempre foi - e sempre será -  uma voz de resistência contra as injustiças, o autoritarismo e as trevas.

Fala, poeta!

O dia em que o morro descer e não for carnaval
ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
(é a guerra civil)

No dia em que o morro descer e não for carnaval
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval

O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual

Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o poder devolver à esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval

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