Quase um século depois, o cultuado "Húmus", de Raul Brandão, é relançado no Brasil

O próximo lançamento da Editora Carambaia, especializada em edições bem cuidadas de livros inéditos ou quase no mercado brasileiro, é um dos marcos fundamentais da literatura portuguesa do século XX: "Húmus", de Raul Brandão (1867-1930). Considerado por muitos críticos como um dos alicerces inaugurais do modernismo português, ao lado de nomes como os dos poetas Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, "Húmus" é publicado no ano em que completa seu centenário de lançamento e em que se celebram os 150 anos do nascimento de seu autor.

Obra inclassificável, que se equilibra em algum ponto entre romance, ensaio e prosa poética, é tão reverenciada quanto pouco lida – a edição brasileira anterior saiu em 1921. Esta versão segue o texto de 1926, retrabalhado pelo autor português, e traz posfácio assinado por Leonardo Gandolfi, poeta e professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Em "Húmus", referência à matéria orgânica feita de decomposição, que Brandão evoca como fim e recomeço de toda a vida sobre o planeta, o formato é de diário e o cenário é uma vila modorrenta habitada por figuras ancestrais e quase estáticas, absorvidas por rotinas banais. “Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sítio úmido”, constata um narrador atormentado pelo absurdo à sua volta. Seu interlocutor é uma figura enigmática e provocadora, o Gabiru, que às vezes se sobrepõe ao próprio “eu” do autor. Outros personagens fantasmagóricos surgem e desaparecem até que uma ideia, a rigor inconcebível, começa a tomar vulto: a supressão da morte.

Raul Germano Brandão nasceu na Foz do Douro, localidade da cidade do Porto, filho e neto de pescadores. Seguiu carreira militar, embora tenha se mantido restrito às atividades burocráticas do Exército, o que permitiu que se dedicasse paralelamente ao jornalismo, nas funções de repórter e cronista. Quando se aposentou, aos 45 anos, tornando-se exclusivamente escritor, morava em uma quinta nos arredores da cidade de Guimarães. Até os 63 anos, quando morreu em Lisboa, produziu intensamente como memorialista, romancista, autor de ficção histórica, ensaísta e dramaturgo.

Por sua instigante permanência, Brandão mereceu reconhecimento de boa parte dos grandes autores portugueses que vieram depois. José Saramago, Almeida Faria, José Cardoso Pires e Herberto Helder, assim como a angolana Djaimila Pereira de Almeida, reverenciam sua influência. Helder, no centenário de Brandão (1967), preparou um livro inteiro que é um poema também chamado "Húmus". A atualidade do autor foi atestada ainda pelo último longa-metragem de Manoel de Oliveira (2012), adaptação da peça teatral "O gebo e a Sombra".

Com projeto gráfico de Mayumi Okuyama, inspirado nas manchas e porosidades das casas da vila, o lançamento da Editora Carambaia reproduz desenhos da artista Maria Laet, nas capas e guardas do volume, que acentuam as referências geológicas e orgânicas do texto de Raul Brandão.

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