Estávamos batendo papo, num raro momento de descanso, rindo, contando piadas, descontraindo.
Em certo momento, o veterano repórter fez um comentário sobre uma chamada [texto que resume a notícia e indica em que página ela está na íntegra] na capa de uma matéria sem importância, mas cujo autor era o "enfant terrible" da redação, um sabe-tudo que se metia em todos os assuntos e em todos demonstrava a sua ignorância - e a sua egolatria.
Esse veterano repórter, que havia começado na empresa como office boy, e graças ao seu esforço e talento conseguiu se destacar numa equipe de grandes profissionais, estava escrevendo uma série de reportagens sobre craques futebolísticos do passado, o que eles estavam fazendo da vida, um misto de passado e presente. Um bom trabalho.
Uma das reportagens ocupava uma página inteira da edição daquele dia do caderno de esportes do Estadão.
Comparamos as duas matérias, a do "enfant terrible" e a do veterano repórter, e ficamos sem entender o motivo pelo qual o minucioso perfil do antigo astro do esporte mais popular do mundo não havia merecido sequer um titulozinho na primeira página do jornal.
A resposta veio, em tom de blague, da boca do próprio veterano repórter:
- Eu deveria ter assinado a matéria com o nome do ... - se referindo ao sabe-tudo que emplacava na capa qualquer besteira que escrevia.
Rimos.
Até que percebemos que atrás de nós passava o dito cujo, que nos cumprimentou secamente e seguiu adiante.
No outro dia fui chamado à sala do redator-chefe:
- Que história é essa do ... ficar falando mal do ..?
Expliquei com detalhes o que havia se passado e que ninguém havia criticado ninguém, que nós estávamos apenas batendo papo, que tudo tinha sido apenas uma brincadeira sem maiores consequências.
Mas não fui eloquente o bastante, já que, dali em diante, o veterano repórter ficou, como se diz, "marcado" - tudo o que ele fazia era criticado pelo chefe de redação, merecia um reparo, era objeto de uma ameaça.
Esperava que, com o tempo, o incidente fosse esquecido e tudo voltasse ao normal.
Meses se passaram, até que um dia fui novamente chamado pelo redator-chefe.
E daquela vez não houve jeito:
- Você vai ter de demitir alguém, vai ter cortes no jornal todo. Mande embora o ...
Assim, a seco, sem espaço para contestação.
Dei a triste notícia ao veterano repórter, que reagiu como esperava, com um misto de surpresa, decepção e indignação.
Quando achava que esse lamentável episódio havia finalmente se encerrado, o telefone tocou. Atendi, era a secretária do diretor de redação, que passou a ligação a ele. Em poucos segundos de um papo furado, ele soltou uma das frases mais desconcertantes que já ouvi na vida:
- Que coisa chata essa demissão do ...
Pilatos não teria dito algo menos comprometedor.
O papo furado prosseguiu até que não tínhamos mais nada a conversar.
À noite, em casa, com a adrenalina em níveis normais, fiquei pensando em como bobagens tais quais o cinismo, a hipocrisia, a amizade, a solidariedade e a vilania são capazes de marcar indelevelmente o caráter dos homens. (Carlos Motta)
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