O falso moralista


Carlos Motta

Nelson Sargento, 94 anos de vida, dezenas deles em prol da arte e cultura, é o autor, entre outras maravilhas, de uma música que reflete com exatidão a luta incessante do Brasil real contra o oficial, "Agoniza Mas Não morre", regravado por inúmeros intérpretes e sempre atual:

Samba
Agoniza mas não morre
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro

Samba
Negro, forte, destemido
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim, no terreiro

Samba
Inocente, pé-no-chão
A fidalguia do salão
Te abraçou, te envolveu
Mudaram toda a sua estrutura
Te impuseram outra cultura
E você nem percebeu
Mudaram toda a sua estrutura
Te impuseram outra cultura
E você nem percebeu

Sargento tem uma obra de extrema qualidade, de fina ironia e inteligência. É um dos craques da nossa música popular. 

Quem tiver alguma dúvida sobre isso deve ouvir "Falso Moralista", samba que parece que foi feito sob medida para retratar um dos mais comuns tipos brasileiro, o homem de bem, esse que aponta o dedo, indignado, para a corrupção dos outros, enquanto vai praticando, no dia a dia, toda sorte de falcatruas, indignidades e patranhas.

Esse tipo que, para muitos, é o modelo a seguir.

Você condena o que a moçada anda fazendo
e não aceita o teatro de revista
arte moderna pra você não vale nada
e até vedete você diz não ser artista

Você se julga um tanto bom e até perfeito
Por qualquer coisa deita logo falação
Mas eu conheço bem o seu defeito
e não vou fazer segredo não

Você é visto toda sexta no Joá
e não é só no carnaval que vai pros bailes se acabar
Fim de semana você deixa a companheira
e no bar com os amigos bebe bem a noite inteira

Segunda-feira chega na repartição
pede dispensa para ir ao oculista
e vai curar sua ressaca simplesmente
Você não passa de um falso moralista

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