Carlos Motta
Bezerra da Silva foi um dos mais originais artistas do país. Sua morte, no dia 17 de janeiro de 2005, há exatos 13 anos, portanto, silenciou a voz que cantava os excluídos, os marginalizados de toda espécie, os moradores das periferias, os valores morais e os hábitos dessa massa de despossuídos que forma o Brasil real.
A obra desse recifense que chegou no Rio de Janeiro com 15 anos de idade, clandestino em um navio, e que, antes de mergulhar na vida artística trabalhou como ajudante de pedreiro e pintor de paredes, é singular, um verdadeiro tratado sociológico sobre, principalmente, os moradores das favelas.
De sua terra natal, Bezerra trouxe a lembrança do coco, ritmo que lhe rendeu os dois primeiros LPs, de relativo sucesso. Mas foi no samba que ele encontrou a sua vocação artística e foi reconhecido pelo público.
Além de cantar, Bezerra tocava vários instrumentos de percussão e compunha. Mas ele preferia gravar os sambas dos amigos, pessoal que conhecia nas beiradas da vida, trabalhadores braçais, mão de obra barata, gente como ele, que sobrevivia sabe-se lá como nesta selva também conhecida como sociedade capitalista.
Os sambas que gravou abordam temas que compõem o dia a dia dessas pessoas: a violência, as relações com os poderosos, as drogas, a malandragem, as traições...
Nunca o amor - a palavra não existe nas suas músicas.
Nunca o amor - a palavra não existe nas suas músicas.
Ele explicou o motivo disso numa entrevista que deu em 2001:
“O problema não é a palavra. Eu sempre procurei ouvir as minhas opiniões e as dos outros, vivendo dentro de uma realidade. Então, eu tive prestando a atenção nessa palavra, A-M-O-R, eu procurei saber o que era, não falando dos compositores do mundo artístico, que esse é um tema manjado, cansado, fica cansativo. Você vê a maioria das composições é 'meu amor, eu te amo', não sai disso, é uma coisa de novela. Quanto à palavra amor, eu procurei saber, e acordo com a definição, isso não pode existir aqui na Terra. Segundo a definição, ‘o amor não tem sexo, o amor é puro, é sublime, eterno, divino, puro, lindo, perfeito, sem defeito…’. Se o amor é isso tudo, então aqui na Terra ele não mora, bicho, de maneira nenhuma."
Se, porém, Bezerra ignorava o amor no que cantava, ele abordou, nos seus sambas, como nenhum outro artista popular, uma das figuras mais desprezíveis da sociedade, o delator, o dedo-duro, o alcagueta, o X-9 - haja sinônimo para essa personagem abominável que, de uns tempos para cá foi transformado em quase um herói pela justiça (sic) brasileira.
Há quem jure que a sabedoria popular é imbatível.
Se for, o dedo-duro que se cuide: o povão não o suporta.
Bezerra, PhD em sentimento popular, expressou o que sentia pelo delator em diversos sambas.
"Defunto Caguete" e "Dedo-Duro" são dois bons exemplos.
Canta, Bezerra!
https://www.youtube.com/watch?v=bU0-zHoBA2Y
Defunto Caguete
Mas é que eu fui num velório velar um malandro
Que tremenda decepção
Eu bati que o esperto era rife ilegal,
Ele era do time da entregação
O bicho esticado na mesa
Era dedo nervoso e eu não sabia
Enquanto a malandragem fazia a cabeça
O indicador do defunto tremia
Era caguete sim!
Era caguete sim!
Eu só sei que a policia pintou no velório
E o dedão do safado apontava pra mim
Era caguete sim!
Era caguete sim!
Veja bem que a polícia arrochou o velório
E o dedão do coruja apontava pra mim
Caguete é mesmo um tremendo canalha
Nem morto não dá sossego
Chegou no inferno, entregou o diabo
E lá no céu caguetou São Pedro
Ainda disse que não adianta
Porque a onda dele era mesmo entregar
Quando o caguete é um bom caguete
Ele cagueta em qualquer lugar
(Bezerra da Silva)
Dedo Duro
Fecharam o paletó do dedo duro
Pra nunca mais apontar
A lei do morro é barra pesada
Vacilou levou rajada na idéia de pensar
A lei do morro é barra pesada
Vacilou levou rajada na idéia de pensar
A lei do morro é ver ouvir e calar
Ele sabia, quem mandou ele falar
Falou de mais e por isso ele dançou
Favela quando é favela, não deixa morar delator
Walter Coragem/G. Martins/Bezerra da Silva)
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