Para desafinar o coro dos contentes



Carlos Motta

Houve um tempo em que os músicos brasileiros ousavam, criavam, iam além das fórmulas estabelecidas e fáceis - arriscavam tudo, nome, carreira, em troca da liberdade para se indignar, de se expressar em meio à névoa cinza que obscurecia o Brasil de então.

Não foram compreendidos na época, ainda não são compreendidos tantos anos depois, ainda carregam nas costas o pesado rótulo de "malditos", como se fossem aberrações que vagam no mundo dos perfeitos e dos "normais".

Eram, antes de mais nada, corajosos, porque sabiam que não tinham de enfrentar apenas o desprezo popular, as vaias públicas, os xingamentos ostensivos dos cães de guarda do poder, mas também a possibilidade, tangível, ameaçadora, opressiva, das dores da tortura física e psicológica, e até a eliminação física.

De certa forma, foram heróis que souberam lutar contra a crueldade institucional com as armas que tinham - seu talento, sua voz, seu cérebro, sua emoção.

O mais emblemático de todos esses "malditos" talvez seja o carioca Jards Macalé, 74 anos de fina ironia.

Sua obra sintetiza este Brasil que tentou se modernizar e depois voltou a ser a vítima preferida de uma elite ignorante, burra, escravocrata e medieval.

Macalé segue cantando, hoje com mais admiradores, mas infelizmente com nenhum - ou quase nenhum - seguidor. 

Não fez escola, pois afinal, como dizem os versos de Torquato Neto, na canção "Let's Play That", da dupla, "quando eu nasci/um anjo louco muito louco/veio ler a minha mão/não era um anjo barroco/era um anjo muito louco, torto/com asas de avião/eis que esse anjo me disse/apertando a minha mão/com um sorriso entre dentes/vai bicho desafinar/o coro dos contentes".

E quem nasce para desafinar o coro dos contentes nunca será convidado para participar do banquete dos homens de bem.

Além disso, como esperar que alguém alcance a felicidade se nasceu em Gotham City, no céu alaranjado de Gotahm City, quando caçavam bruxas nos telhados de Gotham City no dia da independência nacional?

Let's play that!

Aos 15 anos eu nasci em Gotham city
Era um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham city
No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Eu fiz um quarto quase azul em Gotham city

Sobre os muros altos da tradição de Gotham city
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Só serei livre se sair de Gotham city
Agora vivo como vivo em Gotham city
Mas vou fugir com meu amor de Gotham city
A saída é a porta principal

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

No céu de Gotham city há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

("Gotham City" - Jards Macalé/José Carlos Capinan)

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