Carlos Motta
O Brasil é um país tão rico musicalmente que se dá ao luxo de esconder da maioria das pessoas um artista como Edvaldo Santana, que há mais de 40 anos vem fazendo um trabalho único pela sua originalidade, criatividade, coerência, liberdade e coragem - muita coragem.
Edvaldo, filho de nordestinos nascido e criado no bairro de São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, é uma verdadeira antena musical: nos oito discos que lançou ele canta de tudo, samba, reggae, funk, blues, rock, country, baião, choro...
Se há alguém que compreendeu, na música popular brasileira, a importância de universalizar a aldeia, é ele. Os versos de sua canção "Variante" explicam esse seu esforço artístico: "Se eu pudesse aproximava os tempos/Adonirava o blues..."
Edvaldo trabalha, sem nenhum preconceito, com temas que são frutos de sua observação, de sua vivência.
E se, literariamente, se constitui num cronista da vida da metrópole - e até mesmo dos fundões deste imenso país -, com seus tipos e situações, seus amores e temores, desprezados pelo chamado "mainstream", o seu caldeirão musical, temperado por ervas de aromas diversos, é uma lição para todo artista que pretenda ser contemporâneo e queira expressar, com a sua sensibilidade, a época em que vive.
Cada disco seu é melhor que o outro, com sacadas que levam o ouvinte mais atento a se perguntar por que essas músicas não tocam no rádio ou por que os meios de comunicação, os críticos musicais, os achistas em geral, simplesmente colocam e esquecem um talento desses numa gaveta com o rótulo de "maldito", ou, os mais complacentes, de "independente".
Nesta entrevista ao blog, Edvaldo Santana lava a alma daqueles que não se prendem a modismos e não classificam os artistas por gênero musical, como se eles fossem frutos de uma programação implacável, burocrática e que se repete ao infinito.
"Não produzo pensando no tempo, não marco cartão", diz ele. "Sou um paulistano filho de nordestinos, um bicho urbano com características rurais e minha obra reflete o que estou sentindo", continua, para em seguida fazer a si mesmo uma pergunta que responde com uma sinceridade rara hoje em dia: "Minha música é contemporânea? Nunca pensei nisso, pode ser, por ousar nas misturas e criar um novo campo de sonoridade através da canção, por não encontrar nenhum obstáculo entre o samba e o blues, por ter grande amigos músicos, identificados com uma estética onde a arte de executar um instrumento está acima de qualquer modalidade de plugins."
Fala, Edvaldo!
Segundo Clichê - Como é ser um músico "independente" no Brasil? Desde quando você percebeu que ficaria fora do chamado "mainstream"?
Edvaldo Santana - Liberdade significa muito em aspectos diversos. Quando você não se identifica com um tipo de relação, o bom senso indica que você procure outros caminhos, se você quer de fato se envolver com a arte, o negócio da grana passa a ficar em segundo plano. A contradição é que você quando ganha a independência tem também que tratar de negócios, afinal eu gosto de cantar e tocar, mas também de comer, de morar, de sonhar, de viver, de criar. A pressão da indústria cultural, baseada na competição, onde o artista que vende mais é mais cortejado, faz com que artistas inventivos se afastem desse tipo de atuação. Eu nunca fui interessado em fazer música para vender no mercado. Desde o rompimento da banda Matéria Prima com a CBS, em 1977, que tenho percorrido o caminho de ser livre, não acredito que o "mainstream" tenha esse poder de definir minha vida, reflito que eu é que não consegui me adaptar. Tenho muita sorte de ter encontrado pessoas talentosas como o grande músico Luiz Waack, que sempre acreditou e acredita nessa história.
Um beque uma pinga, Jacó e Pixinga
Um frio na barriga, Torquato, Raul
Charutinho maloca o Sampaio na toca
Miriam bate na porta do malandro urubu
("Choro de Outono")
Segundo Clichê - Dá para você situar o seu trabalho em relação à produção musical brasileira contemporânea?
Edvaldo - A arte é atemporal, a música brasileira então nem se fale. Não produzo pensando no tempo, não marco cartão. Sou um paulistano filho de nordestinos, um bicho urbano com características rurais. Minha obra reflete o que estou sentindo. Se ela é contemporânea? Nunca pensei nisso, pode ser, por ousar nas misturas e criar um novo campo de sonoridade através da canção, por não encontrar nenhum obstáculo entre o samba e o blues, por ter grande amigos músicos, identificados com uma estética onde a arte de executar um instrumento está acima de qualquer modalidade de plugins. Como não me interesso pela futilidade, os deuses da arte me trazem sensibilidade e perspicácia, para compreender melhor sua diversidade. Tem muita gente fazendo música, isso é bom, pois a arte depura e faz a gente se aprofundar nos nossos dilemas, nas nossas virtudes.
Gagarin pisava nos astros distraído
Quando descobriu que a Terra é azul
Na Terra, a guerra explodia, em cada esquina se via
Um black tocando blues
("Cabral, Gagarin e Bill Gates")
Segundo Clichê - Você, pelo que se percebe em suas músicas, recebeu muitas influências. Quais as mais fortes? Que peso tem o fato de você ter sido criado num bairro da periferia paulistana em sua obra?
Edvaldo - Sou totalmente influenciado pela novidade, pelo que aguça meus sentidos, porém tem muita gente que me ajudou a perceber o mundo. Primeiramente, sou filho de um pai piauiense, Felix, canhoteiro que tocava violão e cantava canções de suas andanças pelo Brasil, além de gostar de Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim, Pixinguinha. Por ter nascido num bairro povoado por nordestinos, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro eram constantes, também adorava quando Manezinho Araújo cantava na TV uma embolada, onde a gente assistia desde os festivais, aos programas da Elis Regina, do Roberto Carlos, dos tropicalistas, dos cearenses, e o nosso grande ídolo artista do bairro, Antonio Marcos. Minha mãe Judite tinha uma pensão e me incumbia às vezes de levar bebida nas casas de viração, uma espécie de avião de cachaça. Acho que o meu gosto por boleros vem desse tempo - Altemar Dutra, Carlos Alberto. Já semiprofissional, tive o prazer de trabalhar com Tom Zé, em 1974, que é uma referência vivida na prática. O rock como atitude se condensa em alguns festivais e chega para a gente: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Carlos Santana, Joe Cocker e tantos outros. Os mestres Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Belchior, João Nogueira, sempre me acompanharam pelos lugares onde andei. Nos anos 80 me aproximei mais da música negra, o jazz, o blues o reggae, a salsa, a morna, Charlie Parker, Miles Davis, Tom Waits, Bola de Nieve, João Bosco, Itamar Assumpção, Bob Marley, Cesária Évora. Nunca poderia negar o aprendizado que tive e que tenho, da minha aldeia de Ururaí, que virou São Miguel Paulista, terra de Mané Gafieira, Macumbinha, um dos caras que inventaram o Jequibau [ritmo musical lançado pela primeira vez em disco pelo pianista Mario Albanese e maestro Cyro Pereira em 1965], e Waldir Aguiar. Ali é a base que sustenta o amor, a amizade, o respeito e a dignidade.
Eu vou tomar Maria-Mole na velha estrada do Rio
Que pros manos lá da vila liga mais que muito fio
Para cantar no Hip-Hop um pagode do meu tio
A quebrada da cidade tem a cara do Brasil
("Jataí")
Edvaldo - Estou na terra de mestres da literatura, da poesia, da letra de música, é muita responsa, desde cedo tive literatura de cordel, mas também tive Baudelaire, quem gostava de outra coisa dava um jeito para conseguir, de um primo comunista, o livro do Chico Buarque, de um bedel da escola os gibis do Fantasma e o "catecismo"... Na poesia sempre fui agraciado, nos tempos de MPA [Movimento Popular de Arte, criado no fim da década de 70 do século passado, do qual Edvaldo fez parte], Akira Yamasaki sempre foi um farol, Severino do Ramo me apresentou a Glauco Mattoso, e depois Ademir Assunção me apresentou a Paulo Leminski, que abriu minha cabeça com sua síntese avassaladora, me aproximando de Haroldo e Augusto de Campos, de Arnaldo Antunes. Escrevo o que me toca, às vezes o que me alegra, às vezes o que me deixa triste, gosto muito de observar jeitos, sotaques, costumes. Em cada época me interesso mais por uma dessas características. Deixo que o sentimento profundo me absorva. O nascimento de minha filha me trouxe uma canção trazida pelo coração emocionado, já "Jataí" compus pesquisando meu país, usando um pouco mais o conhecimento da mente. Em outras canções a emoção e a razão se encontram e juntas dão sentido para nossas ideias. Nesse novo disco tem uma música chamada "Fazendo pra Aprender", que é fruto de uma conversa por telefone de um fã apaixonado por uma argentina. Não tem manual, toda hora é hora, a arte é um alimento muito nutritivo.
Ei falador
Sua vida de cagueta não vale um tostão
Nem Miami nem Sourbonne
A grana que sumiu tá na casa do pastor
Ninguém vai pagar o prêmio
("O Retorno do Cangaço")
Segundo Clichê - Conte um pouco da sua história: você é autodidata ou estudou música?
Edvaldo - Sim, autodidata, quebrando as cordas de aço do violão de meu pai, vendo os caras tocarem no bar, no baile, na rua, em casa, sonhando com essa coisa lúdica que a arte produz na gente. Deveria ter insistido em estudar música, mas era complicado, trampo e colégio, tinha que ajudar a família, os tempos nunca foram fáceis. Sou o filho mais velho de oito sobreviventes, nascidos na periferia, estudei até o colegial, fui operário, jogador de várzea, virei artista quando entendi o caminho da arte, torto e privilegiado, ando livre no cerrado, na caatinga, na quebrada. Falar de mim não sou bom não, tenho dificuldades, mas posso dizer que consigo fazer o que gosto quase sempre e isso é uma dádiva, exige coragem e ousadia. Não temer o conflito e nunca se sentir derrotado... Sempre haverá um próximo passo.
Se o Sampaio já cantou pro Melodia
Que virão melhores dias pra quem ouve o coração
Sem receio sem poder e sem status
Joga fora o guardanapo e vem pra cá comer com a mão
("Sampaio Melodia")
Edvaldo - Estamos preparando para lançar nas plataformas digitais a gravação ao vivo realizada em 16 canais, pela Colmeia no Carvalho, do show de lançamento do álbum mais recente ["Só Vou Chegar mais Tarde", lançado em 2016] no Sesc Pompéia. Também está em fase de finalização um videoclipe da música "Predicado", gravado na Cidade Tiradentes, no Instituto Pombas Urbanas, produzido por Lentes Periféricas, DMK Art Studio e Casa Amarela. Tenho um livro inacabado que estou querendo publicar, fala de São Miguel e da minha vivência no bairro, um projeto que vivo adiando, mas que uma hora tem que sair, para desenrolar. Continuo fazendo música, isso é o que me salva, criar é a melhor parte da vida, tenho cumprido com desenvoltura meu ofício, cantando em variados lugares, espaços, ruas, praças, teatros, casas, rádios, TVs, salões, saraus, galpões, tenho saído mais para a estrada, para divulgar o novo álbum que está sendo bem aceito onde chega. Com a possibilidade de tocar violão e cantar, faço show com mais facilidade de ser viabilizado, não posso ficar esperando o mecenas aparecer, isso é só no filme e olhe lá!
No Rio São Francisco navega o vapor
Que navegou no Mississipi
O Rio São Francisco desagua sua dor no Tietê
Variante da Estação do Norte
Se eu pudesse aproximava os tempos
Adonirava o blues...
(Variante)
Segundo Clichê - Na sua opinião, a internet atrapalha ou ajuda o músico?
Edvaldo - A internet ajuda a divulgar e isso é muito bom, mas também facilita o acesso de muito picareta, querendo apenas aparecer a qualquer custo, muitas vezes com pouco conteúdo. Claro que é um invento muito rico de informações para serem estudadas, é uma ferramenta admirável, que tem me ajudado na exposição da obra, outras gerações estão tendo a possibilidade de ouvir meus discos, o interesse tem crescido. É evidente que quem paga mais vai ser mais exposto, é um grande negócio, os direitos autorais poderiam ser regularizados. A internet é um oásis para os artistas que não estão ligados às grandes corporações, que dominam a comunicação de massa.
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