Carlos Motta
Lá pelo fim dos anos 70 ou início dos anos 80 do século passado, na então calma Jundiaí, eu cumpria uma rotina semanal que rendeu saborosos frutos para a minha educação artística: ia até uma banca de jornais no centro da cidade pegar os fascículos de música editados pela Abril. O jornaleiro os guardava para mim, religiosamente, e foi graças a ele que pude completar minhas coleções de música erudita, popular brasileira, de ópera e de jazz.
Tenho os fascículos até hoje - considero-os uma preciosidade da qual não me afastarei até o fim da vida.
Foi por intermédio deles que fiquei conhecendo a obra de inúmeros artistas geniais, brasileiros e estrangeiros, que vestiam fraque ou bermuda, carregavam uma batuta ou um tamborim, soltavam a voz num estrepitoso dó de peito ou a usavam como uma extensão de sua respiração - para mim, até hoje, música é tanto Pavarotti como João Gilberto, Vicente Celestino e Dick Farney, Maria Callas e Elizeth Cardoso, Beatles e Hermeto, Lamartine Babo e Muddy Waters, Pixinguinha e Bach, razão e emoção.
E foi num dos fascículos da coleção de jazz que escutei, pela primeira vez, o violão mágico de Django Reinhardt e o violino celestial de Stéphane Grapelli, os dois brincando de quem é capaz de humilhar mais os pobres ouvintes, os ordinários servos da grande ordem da música universal.
Certa noite, uma gloriosa noite, vi, com esses olhos que a terra há de comer, e ouvi, com esses ouvidos hoje tão infectados pela algaravia do mundo, um já septuagenário Grapelli deixar uma plateia de, sei lá, umas mil e tantas pessoas, embasbacada com as notas que tirava de seu violino, numa das primeiras edições do Free Jazz Festival, em São Paulo.
O homem tocava como se estivesse fazendo a coisa mais natural do mundo, como se, por exemplo, fosse eu batendo um papo com algum amigo de longa data num botequim mais que conhecido.
Anos e anos depois, com a internet já dominando a vida de todos nós, fiquei sabendo da existência de um tal de Jimmy Rosenberg - e lá vou eu ao YouTube para me maravilhar, novamente, com a capacidade que o ser humano tem para fazer coisas extraordinárias.
Dali em diante, foi difícil segurar o fascínio por esse ritmo alegre e espontâneo, que permite aos executantes demonstrar todo o seu virtuosismo, a sua técnica e sensibilidade.
Faltava apenas ver e ouvir, de perto, ou como dizem, ao vivo, o pessoal se esbaldar nos improvisos, se lambuzar nas deliciosas melodias, e se remexer com a batida hipnótica daquilo que se rotulou de "jazz cigano".
Hoje não falta mais, graças a essa turma que promove o Festival de Jazz Manouche de Piracicaba, uma pérola artística que ficará guardada num compartimento especial do meu cérebro por muito tempo.
Dizer que passei algumas horas de puro êxtase no Engenho Central é pouco.
Mais que isso, devo confessar, assistir ao festival foi como me deixar levar pelo rio Piracicaba, que corria a poucos metros do palco, num fluxo ininterrupto de força e beleza.
Naquele momento tive a certeza de que, pelo exemplo da arte, o homem pode superar preconceitos e fazer um mundo melhor - um mundo como, só para deixar bem claro, essa obra-prima chamada Minor Swing, perfeita combinação entre ritmo, melodia e harmonia, ou, se preferirem, entre o desejo, a realidade e a esperança.
(Publicado originalmente no site do Hot Club de Piracicaba)
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