Reformar não é deformar


Clemente Ganz Lúcio

As reformas normalmente são feitas para melhorar alguma coisa. Agora, como promover reformas que incidam sobre as relações sociais? Nesse caso, trata-se de alterar as regras e instituições do jogo social, movido por interesses diversos e, muitas vezes, divergentes. Por isso, frequentemente, o que, para uns, reforma, para outros, deforma.

O projeto de reforma trabalhista, elaborado pela Câmara dos Deputados e em trâmite no Senado, promove uma mudança regressiva para reduzir estruturalmente o custo do trabalho, eliminar passivos trabalhistas e legalizar a precarização.


Muito diferente desse projeto, uma reforma trabalhista deve estar conectada com um projeto de desenvolvimento nacional, visando dar fluidez às relações de trabalho, para torna-las eficazes na promoção de uma produção econômica que agregue valor, gere lucros e aumento dos salários, promova investimentos e crie empregos de qualidade, estruture e estimule um Estado forte, promova e proteja os diretos trabalhistas.

O desenho de uma reforma com esse objetivo começa com as mudanças no sistema de relações de trabalho, ou seja, nas instituições que regem os processos negociais. A negociação coletiva precisa ser o principal meio pelo qual se processa a construção das regras das relações de trabalho, complementando, de maneira harmônica, os marcos legais. Os sindicatos devem ser os sujeitos coletivos de representação de interesse, capazes de firmar compromissos, acordos e convenções.

As mudanças devem definir regras para valorizar e fortalecer as negociações coletivas, indicando como funcionará o sistema sindical de representação, induzindo a alta representatividade dos sindicatos desde o chão da empresa e em toda a estrutura vertical, habilitando-os para conduzir processos negociais em todos os níveis (empresa, categoria, setor, nacional).

Sindicatos representativos devem ter os instrumentos adequados para conduzir a tarefa de negociar em condições de equilíbrio de forças. Acesso à informação, fortalecimento da confiança no cumprimento do acordo, incentivo ao diálogo, mecanismos de solução voluntária e ágil de conflitos, entre outras, são algumas das diretrizes para criar regras que incentivem a negociação. A abrangência dos efeitos dos acordos é uma escolha fundamental, que repercutirá sobre a organização e o financiamento sindical.

São justamente as características e qualidades do novo sistema de relações de trabalho (tipo de organização e representação sindical e de normatização dos processos de negociação) que permitirão definir o conteúdo e escopo do objeto da negociação, sistema este assentado no princípio de ampla participação dos trabalhadores, na responsabilidade compartilhada por decisões democráticas e na proibição de práticas antissindicais.

Tão importante quanto o desenho final de todo o sistema de relações laborais é a definição da estratégia de transição do velho para o novo. Uma transição que valorize e incentive a mudança voluntária assumida pelas partes é fundamental para o sucesso do novo modelo. Uma transição, por exemplo, que reconheça as desigualdades existentes entre as empresas (micros, pequenas, médias e grandes) e a ausência de proteção de parcela expressiva dos trabalhadores, deve gerar mudanças que ampliem a proteção laboral e o desenvolvimento econômico das empresas, com definição de metas e repartição de resultados.

Uma reforma deve buscar construir uma nova cultura política nas relações laborais, por isso deve ser produzida em espaço de diálogo social e de ampla negociação, com o envolvimento de todos os agentes econômicos e políticos. Essa construção deve gerar compromissos fortes com o novo modelo e ser capaz de conduzir a transição e criar confiança para enfrentar incertezas geradas pela mudança.

Efetivamente, esses elementos estão todos fora do projeto de reforma trabalhista elaborado pela Câmara. Ao contrário, o processo de mudança cria derrotados, o que acirrará os conflitos, aumentará a desconfiança, fragilizará compromissos e trará mais insegurança. Trata-se de um projeto de quem gostaria que a senzala ainda existisse.

(Clemente Ganz Lúcio é sociólogo e diretor-técnico do Dieese)

Comentários

  1. Texto de primeira qualidade. Os reformistas querem uma sociedade onde teremos de um lado os donos do dinheiro, com todo o poder inerente, e de outro os indigentes, pessoas famintas à cata de um trocado para matar a fome. Tudo em nome do mercado, que sabemos exatamente o que é, com todas essas denuncias e delações que tem vindo à tona. Ou seja: o paraiso da putaria em noite de luar. Que o Brasil acorde e rejeite essa mutilação vergonhosa em nossa sociedade.

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